sábado, novembro 07, 2009

Prólogo de Uma Vida


Me lembrando de minha infância tão distante, percebo que apesar de tudo posso me considerar um afortunado. Posso considerar que minha geração foi a última geração de crianças antes do progresso e da tecnologia tomar conta de tudo.

Era aquela infância onde crianças eram crianças de verdade. Corriam descalços pela terra, se sujavam, rasgavam roupas e pequenos cortes e machucados eram cotidianos. Haviam sempre muitas crianças brincando juntas, e o termo solidão era algo que não existia.

Ficar dentro de casa era proibido, quase um castigo. Na verdade a maior ameaça dos pais nessa época era justamente essa. “Filho, você está de castigo, não poderá sair pra rua hoje”. E que sofrimento isso trazia. Da janela, observava as outras crianças correndo felizes, brincando de pega-pega ou esconde-esconde.

Até mesmo os sonhos eram mais ingênuos. Os sonhos se resumiam à uma garrafa de Tubaína, ou à um prêmio que se ganhava completando uma página dos álbuns de figurinhas. O futebol no campinho nem era tão competitivo. Tinham os bons, os ruins e os péssimos, e todos riam e se divertiam da mesma forma. Ninguém sonhava em ser jogador profissional e ficar rico. Apenas queriam sorrir e estar com os amigos.

A escola, lembro bem desse início. Era algo novo. Mais amigos, mais bagunças, mais brincadeiras. E o melhor de tudo, poder enfim saber o que significava férias. Uma sensação de alegria e tristeza, que com o tempo descobri se chamar saudade. Nas férias íamos para o campo. O interior era algo mágico. Acho que as crianças de hoje em dia não sabem o que é isso. Quantas aventuras. Nada de televisão, vídeo-game, computador, apenas a imaginação. Era um mês, que parecia um ano. Acordar cedo era um prazer, não uma obrigação. Quantas árvores escaladas, quantas trilhas descobertas, quantas cachoeiras, rios e lagos encontrados. Quantas surras como castigo pelas traquinagens. Lembro até hoje o prazer de comer uma fatia pão “pullman” com manteiga. Notávamos mais as pequenas coisas, os pequenos detalhes. O mundo era um lugar imenso e misterioso. Correr de cavalos, bodes e bois. Ter medo de encontrar uma cobra. Correr para dentro de casa ao anoitecer. O silêncio noturno do campo. Não é bem silencioso. É recheado de sons, grilos, sapos, lobos. A comida simples do campo. Era maravilhosa, não enjoava, mesmo que sempre comêssemos a mesma coisa. A única coisa ruim era o banho. Gelado. E depois dele, nada mais de bagunça. Não podia se sujar antes de dormir.

Passávamos o ano todo ansiosos pelo mês de Julho. Quando poderíamos novamente voltar para aquele pequeno paraíso de trilhas e rios, onde não haviam prédios nem carros.

Poder contar as aventuras vivídas e sempre aumentar um pouco era a melhor parte do retorno. Por horas na escola ou na rua, contávamos as coisas que haviam acontecido no campo. Os “monstros” imaginários, as grandes sagas enfrentadas por pessoas tão jovens e corajosas. E todos ouviam com atenção, e também contavam as suas aventuras. Eram heróis de suas próprias histórias.

E assim a infância seguia livremente, sem os fantasmas do mundo dos adultos...