Inferno Pessoal

 

 Mais uma vida se passou. Eu olho pela janela embaçada pela chuva. Meu eu de agora sofre pelo que meu eu de antes construiu. Um abismo se abre diante de mim. Não um abismo real, mas metafórico, assim como a vida que finjo viver. A figura sombria que assombra meus sonhos estava certa mais uma vez. Me perdi novamente em meu caminho. Aos poucos minhas memórias se confundem com memórias de outro tempo. Questiono minha sanidade mais uma vez. Os remédios já não ajudam. Cada dia está mais difícil sair da cama. Os sonhos me confortam. Alguns assustam. Mas mesmo assim confortam. A vida nos sonhos é mais real que a vida no mundo desperto.

Uma lembrança constante me persegue. Um sorriso. Um perfume. Uma suave e doce canção. E a brisa. O som das ondas. Estou de novo naquele lugar. As pedras sob meus pés. Aquele cabelo macio esvoaçando em minha frente. Ela então se vira. Vejo o sorriso. Tão lindo e meigo. Quando encaro o rosto, ele se transfigura. Uma imagem horrenda toma conta daquele rosto. A brisa se transforma em uma terrível tempestade. O mar a frente assume uma coloração vermelho-sangue. O cheiro agora é nauseante. Gargalhadas ressoam por todos os lados. Esse é meu inferno pessoal.

Fecho os olhos. Tento me lembrar daquele rosto. O rosto real e não o que me atormenta. Mas aos poucos as lembranças estão desaparecendo. Me sinto despedaçado. Os pedaços de mim vão caindo lentamente. Queria acordar, mas me lembro que não estou dormindo.