Abandono

Enfim o último obstáculo se foi. Seu neto fora dormir. É uma criança realmente encantadora. O brilho de seus olhos era capaz de derreter o coração mais gelado. Seu riso servia de alento até mesmo em dias chuvosos e cinzentos. Mas não podia desistir de seu intento.
É um mundo difícil e que chance tem alguém na sua idade?
Respira fundo. Na cozinha seu filho conversa baixo com sua esposa. É engraçado que eles pensam que ele não pode ouvir seus cochichos. Os mais novos acham que na velhice tudo se torna decrépito. Quando falam com ele repetem várias vezes como se só assim fosse capaz de entender, mas o pior é quando falam como se fosse uma criança, incapaz de decidir por si mesmo.
Ele ri da situação. Sua situação é engraçada. Para alguém que sempre fora tão forte, agora estava a mercê de outros. Isso o incomodava mais do que o entristecia.
Diversas vezes ouvira a nora reclamando dele, de suas manias, de sua idade e dependência. É engraçado como os jovens nunca se dão conta que a velhice chega a todos. De que ser velho não é defeito, é apenas o estado natural das coisas. Um vinho quanto mais velho, melhor o sabor, já um ser humano com toda sua glória e capacidade, ao envelhecer, é visto como uma maçã podre que precisa ser descartada antes que contamine.
Uma lágrima escorre de seus cansados olhos. A noite avança lentamente. Ele sobe ao seu quarto. Quer dizer, quarto que lhe fora emprestado por seu filho, pois seu mesmo, só as roupas do corpo. Pois com o tempo se esquecem que tudo que se conseguiu foi graças aos esforços do velho. Respira fundo e encosta sua fronte cansada no vidro embaçado da janela. Ouviu que pensavam em mandá-lo para um asilo. Ai mais um motivo para discussão. Asilos bons eram caros. E para que gastar tanto com alguém que está morrendo? Ouvira isso mais vezes do que gostaria. Mas não, isso ele não permitiria. Não perderia o último resquício de liberdade indo para uma casa de idosos. Lugar deprimente, sempre pensava. Onde as famílias despejam aquilo que não querem mais. A sociedade criou um ótimo lugar para desencargo de consciência. “Lá estarão em melhores mãos”. Mas existem mãos melhores do que as das pessoas que te amam? Acho que quando se envelhece, perde-se isso.
Lá embaixo, ouvia novamente uma discussão. Provavelmente brigavam de novo por sua causa.
Ele chora agora. Não queria ir, queria ter mais tempo, mais força. Queria ver seu neto crescer. Queria mostrá-lo aos amigos. Ter orgulho em andar lado a lado com aquela criança que possuía um brilho próprio, como seu próprio filho tivera um dia. Abraçar no natal, trazer-lhe presentes. Ser o amparo da ira dos pais. Muita coisa ele ainda queria ser. Mas não havia mais tempo. Seu tempo ali havia acabado. Assim como um elefante velho era hora de ir. De caminhar rumo ao seu destino final. Seu próprio cemitério o esperava.
Escolhe entre seus ternos o melhor e bonito. Ele ri ao pegá-lo na mão. Era o mesmo terno de seu casamento. Não acreditara que durara tanto tempo. E mesmo depois de tantos anos conservava a beleza do passado. Era negro. Lentamente o vestiu. Como um artista, colocou lentamente cada parte da roupa, apreciando cada detalhe, e a cada detalhe uma lembrança. Um mundo melhor, um mundo cheio de esperança, cheio de sonhos. Criamos um mundo para nossos filhos transformarem nisso. A última peça foi a mais dolorosa. Os sapatos lhe traziam uma lembrança especial. Havia sido de seu pai, um exímio sapateiro e depois ele havia dado ao filho. Mas este o rejeitou. Devolveu dizendo que não lhe era apropriado, que era ultrapassado demais, que era velho.
Foi até o banheiro. Fez a barba lentamente. No espelho aquele rosto velho e enrugado, mal lembrava aquele belo rosto do passado que arrancara tantos suspiros. Hoje mal restava o brilho nos olhos, quanto mais a beleza do passado. Mas a cada descida do barbeador, ele se lembrava do passado. Da época em que ele era mais que um estorvo velho. Da época em que ele era a esperança de toda uma família.
A barba se foi, mas as rugas continuavam. Pensou se não conseguiria arrancá-las com o barbeador. Mas, logo desistiu.
Enxugou o rosto e saiu.
Parou diante da porta do quanto do menino. Sua única alegria nos últimos anos. As crianças são a benção do mundo. Eles trazem um pouco de luz para as nossas trevas enraizadas.
Lentamente e sem fazer barulho entrou. Ali na dormia aquele pequeno anjo. Beijou-lhe a testa e sem que conseguisse impedir as lágrimas escorreram. O menino não acordou, mas sorriu. Talvez estivesse sonhando.
Saiu do quarto. Desceu as escadas. Pensou em entrar na cozinha. Espiou pelo lado da porta. Seu filho estava abraçado a sua esposa que chorava.
Virou as costas e seguiu rumo a porta. Parou. Não sabia se tinha coragem. Aquela tinha sido sua casa desde o início. Quanto sangue e suor foram derramados ali. Quantas noites mal dormidas. Quantas humilhações para que pudesse dar um lar para sua amada família. Em cima da estante ainda repousava a foto de sua amada. “Ainda bem que você não viveu para ver isso”, pensou olhando para a foto.
Criou coragem, e girou a maçaneta. Abriu a porta lentamente e saiu.
Enquanto caminhava pela última vez pela calçada que lhe era tão conhecida, virou-se mais uma vez para a casa que tanto amava. Lá de cima, da janela do quarto, seu pequeno neto o observa com tristeza nos olhos.
Engoliu seco, mas não podia voltar atrás. Caminhou até desaparecer na noite escura.
Aquela família poderia dormir em paz agora. O velho deixou de ser um incômodo...
É um mundo difícil e que chance tem alguém na sua idade?
Respira fundo. Na cozinha seu filho conversa baixo com sua esposa. É engraçado que eles pensam que ele não pode ouvir seus cochichos. Os mais novos acham que na velhice tudo se torna decrépito. Quando falam com ele repetem várias vezes como se só assim fosse capaz de entender, mas o pior é quando falam como se fosse uma criança, incapaz de decidir por si mesmo.
Ele ri da situação. Sua situação é engraçada. Para alguém que sempre fora tão forte, agora estava a mercê de outros. Isso o incomodava mais do que o entristecia.
Diversas vezes ouvira a nora reclamando dele, de suas manias, de sua idade e dependência. É engraçado como os jovens nunca se dão conta que a velhice chega a todos. De que ser velho não é defeito, é apenas o estado natural das coisas. Um vinho quanto mais velho, melhor o sabor, já um ser humano com toda sua glória e capacidade, ao envelhecer, é visto como uma maçã podre que precisa ser descartada antes que contamine.
Uma lágrima escorre de seus cansados olhos. A noite avança lentamente. Ele sobe ao seu quarto. Quer dizer, quarto que lhe fora emprestado por seu filho, pois seu mesmo, só as roupas do corpo. Pois com o tempo se esquecem que tudo que se conseguiu foi graças aos esforços do velho. Respira fundo e encosta sua fronte cansada no vidro embaçado da janela. Ouviu que pensavam em mandá-lo para um asilo. Ai mais um motivo para discussão. Asilos bons eram caros. E para que gastar tanto com alguém que está morrendo? Ouvira isso mais vezes do que gostaria. Mas não, isso ele não permitiria. Não perderia o último resquício de liberdade indo para uma casa de idosos. Lugar deprimente, sempre pensava. Onde as famílias despejam aquilo que não querem mais. A sociedade criou um ótimo lugar para desencargo de consciência. “Lá estarão em melhores mãos”. Mas existem mãos melhores do que as das pessoas que te amam? Acho que quando se envelhece, perde-se isso.
Lá embaixo, ouvia novamente uma discussão. Provavelmente brigavam de novo por sua causa.
Ele chora agora. Não queria ir, queria ter mais tempo, mais força. Queria ver seu neto crescer. Queria mostrá-lo aos amigos. Ter orgulho em andar lado a lado com aquela criança que possuía um brilho próprio, como seu próprio filho tivera um dia. Abraçar no natal, trazer-lhe presentes. Ser o amparo da ira dos pais. Muita coisa ele ainda queria ser. Mas não havia mais tempo. Seu tempo ali havia acabado. Assim como um elefante velho era hora de ir. De caminhar rumo ao seu destino final. Seu próprio cemitério o esperava.
Escolhe entre seus ternos o melhor e bonito. Ele ri ao pegá-lo na mão. Era o mesmo terno de seu casamento. Não acreditara que durara tanto tempo. E mesmo depois de tantos anos conservava a beleza do passado. Era negro. Lentamente o vestiu. Como um artista, colocou lentamente cada parte da roupa, apreciando cada detalhe, e a cada detalhe uma lembrança. Um mundo melhor, um mundo cheio de esperança, cheio de sonhos. Criamos um mundo para nossos filhos transformarem nisso. A última peça foi a mais dolorosa. Os sapatos lhe traziam uma lembrança especial. Havia sido de seu pai, um exímio sapateiro e depois ele havia dado ao filho. Mas este o rejeitou. Devolveu dizendo que não lhe era apropriado, que era ultrapassado demais, que era velho.
Foi até o banheiro. Fez a barba lentamente. No espelho aquele rosto velho e enrugado, mal lembrava aquele belo rosto do passado que arrancara tantos suspiros. Hoje mal restava o brilho nos olhos, quanto mais a beleza do passado. Mas a cada descida do barbeador, ele se lembrava do passado. Da época em que ele era mais que um estorvo velho. Da época em que ele era a esperança de toda uma família.
A barba se foi, mas as rugas continuavam. Pensou se não conseguiria arrancá-las com o barbeador. Mas, logo desistiu.
Enxugou o rosto e saiu.
Parou diante da porta do quanto do menino. Sua única alegria nos últimos anos. As crianças são a benção do mundo. Eles trazem um pouco de luz para as nossas trevas enraizadas.
Lentamente e sem fazer barulho entrou. Ali na dormia aquele pequeno anjo. Beijou-lhe a testa e sem que conseguisse impedir as lágrimas escorreram. O menino não acordou, mas sorriu. Talvez estivesse sonhando.
Saiu do quarto. Desceu as escadas. Pensou em entrar na cozinha. Espiou pelo lado da porta. Seu filho estava abraçado a sua esposa que chorava.
Virou as costas e seguiu rumo a porta. Parou. Não sabia se tinha coragem. Aquela tinha sido sua casa desde o início. Quanto sangue e suor foram derramados ali. Quantas noites mal dormidas. Quantas humilhações para que pudesse dar um lar para sua amada família. Em cima da estante ainda repousava a foto de sua amada. “Ainda bem que você não viveu para ver isso”, pensou olhando para a foto.
Criou coragem, e girou a maçaneta. Abriu a porta lentamente e saiu.
Enquanto caminhava pela última vez pela calçada que lhe era tão conhecida, virou-se mais uma vez para a casa que tanto amava. Lá de cima, da janela do quarto, seu pequeno neto o observa com tristeza nos olhos.
Engoliu seco, mas não podia voltar atrás. Caminhou até desaparecer na noite escura.
Aquela família poderia dormir em paz agora. O velho deixou de ser um incômodo...